Pensericando (com açúcar, com afeto)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A casa esconderijo da realidade


Já são 19h30min, com esse horário de verão o Sol rabugento insiste em permanecer a pino por mais tempo, deixando a Dona Lua chateada, por demorar mais para chegar com sua doçura como um queijo, iluminando as estrelas e tudo ao seu redor. Os pássaros passam apressados, indo para suas moradias levar comida para seus filhos e esposas, que os esperam ansiosamente com saudades. A cigarra canta em triste tom uma melodia que serve como um embalo para os bois serem levados até o cocho, guiados por belos cavalos pampas com as crinas balançando pelo ar.

A panela de pressão solta pela casa um delicioso aroma. Logo o amado vai chegar faminto, depois de um dia cansativo. Tirara tanto leite da vaquinha de três tetas que hoje à noite teria doce de leite feito no fogão à lenha para a sobremesa.

E quanto às crianças que brincam no quintal?! Quanta leveza em cada gesto, quanta ingenuidade. Os peões rodam pela terra batida e a lagoa é apedrejada por coquinhos baba-de-boi que são arremessados de longe numa competição para ver qual alcança maior distância.

A bela moça de tranças grossas fica abiscoitando tudo pela janela de seu quarto, enamorando o filho do caboclo da fazenda vizinha. A moça usa um vestido rosa de renda até os joelhos que sua mãe costurara com toda delicadeza. A velha sogra permanece sentada no sofá da varanda a tarde toda, com saudade de seu amado que depois da vaquejada nunca mais apareceu. Costura para esquecer as tristezas e não deixar a depressão que é coisa de gente fraca chegar para fazer uma visita. Tece tantos cobertores majestosos, que servem de abrigo nas noites de roda de viola para os compadres ficarem aquecidos envoltos da fogueira enquanto saboreiam uma bela costela de boi na brasa ou a canjica feita pela moça namoradeira. O camarada chega do vilarejo vizinho para a tal roda de viola que acontece a cada 15 dias, ou quando o boi já está no ponto para virar comida. A roda de viola, onde o compare comparece para cantalorar junto de seus comparsas tomar uma pinga da boa e enamorar a moça bonita das grossas tranças.

As cartas invadem a sacola do carteiro, que peregrina loucamente pelo vilarejo, distribuindo noticias, dizendo dos bons ventos que chegarão. Moça namoradeira, toda manhã espera o carteiro debruçada na porteira. Espera receber as cartas de seu admirador, em letras de forma dizendo: "Estou louco para ver-te novamente. Engorde os bois, pois quero ver-te logo, não consigo me conter de saudade. Se a minha falta não couber dentro do teu peito, escreva uma carta para mim, mande rápido um monte de beijos para relembrar aquelas noites e me espere na sua janela, quero tocar uma palhinha para você enquanto não chega sua idade para eu me apresentar oficialmente para teu pai e pedir tua mão. Beijos, morena!"

[...]

As estrelas se principiam a cair. Bela lua, finalmente chega trazendo o luar, o frio... Um vento gélido que suplica um aconchego, um sorriso, brilho no olhar, uma prosa boa e uma generosa fatia de queijo preparado pela mulher do leite da vaquinha acompanhado do café quentinho.

Oh, como é boa essa vida da roça. O forró é do bom, a pinga é da brava. Boa e simples vida, ò compadre, essa é a vida que ocês da capitar precisa.

Uma casa esconderijo da realidade, das balas, que antes de mel, hoje de chumbo. Uma casinha de sapê, com a panela de pressão domingo de manhãzinha exalando o aroma de carne de porco, as corujas testemunhando olhares, apertos de mãos que se entregam, ilegais... E os bem-te-vis anunciando a chegada de mais um dia de trabalho no campo, seguido de um cochilo na rede ou de uma pesca com minhoca no anzol e um cigarro de palha fedorento no canto da boca.

Venham de bom grado, visitantes são sempre bem vindos na casa esconderijo. A casa da árvore sempre tem uma cama para os visitantes refugiados coberta pela colcha tecida de remendos, juntos da saudade da velha. O cheiro de terra molhada em meio uma tempestade e a iluminação com grandes tochas de querosene quando os bambuzais batem na rede elétrica fazendo a luz acabar e os banhos com a água esquentada na panela de barro no fogão à lenha, depois distribuída pelo corpo nas canecas, fazendo-o arrepiar inteiro e sentir o frio chegar à espinha.

Venha, pode vir... Todos precisam caminhar por um jardim em flor, fugir da violência, do caos da cidade. Traga o final de semana da roça para seu coração, sua mente, sua rotina e viva a vida intensamente, com simplicidade, do melhor jeito que pode ser vivida.

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